Sonegar
imposto é errado? Nem sempre. No Brasil, é legítima defesa.
Por Aluízio Couto
Certa vez, dois amigos me confidenciaram que as empresas das quais eram
sócios faziam de tudo para sonegar alguns tributos. As empresas eram familiares
e não admitiam o governo como sócio. Um sócio como o governo, sustentavam, só
tirava e nada dava. Disseram-me também que o custo de arcar regularmente com
toda a malha tributária inviabilizava não apenas o lucro, mas a própria
existência das empresas.
Sonegação, pela lei, é crime. A imprensa, todos os dias, dá-nos notícias
e mais notícias sobre gente sendo presa por esconder o quinhão ”do povo”. E a
mesma imprensa, todos os dias, dá-nos testemunho da eficiência implacável do
governo em detectar e perseguir aqueles que sonegam. A imprensa noticia os
casos, os âncoras de jornal fazem cara de reprovação e os colunistas
eventualmente debatem o tamanho da carga tributária.
A pergunta moral, no entanto, raramente é feita: sonegar é, afinal,
sempre errado? A resposta que ofereço é “não”. Espero, neste pequeno texto,
convencer o leitor de que o governo não pode reclamar a parte de nossos
recursos que é desperdiçada e de que não há tal coisa como um dever absoluto de
obedecer às leis. Não pretendo discutir qual é o volume de carga tributária
cuja cobrança seria moralmente legítima, independente da qualidade do uso dos recursos.
Adiante.
Para começar, nem toda ação criminosa é imoral. De mais a mais, se toda
ação criminosa fosse imoral, a desobediência civil justificada, tal como a
famosa atitude de David Henry Thoreau, seria uma impossibilidade conceitual.
Isso, porém, é provavelmente falso. Mas como meus amigos conseguiriam
justificar moralmente sua sonegação? Eles não poderiam usar a desobediência
civil como justificativa, é claro. Tipicamente, atos de desobediência civil são
públicos e pretendem chamar a atenção das pessoas para alguma iniquidade legal.
A sonegação de ambos, como sabemos, é secreta. A última coisa que
desejam é chamar a atenção de quem quer que seja. Talvez um modo de
justificá-la seja pensar na legitimidade moral que o estado tem, se é que tem,
para tributar. Alguns filósofos sustentam que simplesmente não existe tal
legitimidade. Para eles, o uso de qualquer forma de coação para transferir
recursos não passa de violação de direitos. Robert Nozick, por exemplo, ficou
conhecido por ter defendido a teoria da titularidade, que não admitia
redistribuição. Para fins de argumentação, não vou assumir aqui essa
perspectiva (penso, no entanto, que ela é perfeitamente defensável).
Qualquer discussão sobre a moralidade dos tributos precisa lidar com
dois aspectos distintos: 1) decidir se o estado tem legitimidade para cobrá-los
e, caso a resposta seja afirmativa, 2) decidir quais são os critérios que o
estado deve satisfazer para efetivamente cobrá-los. Como já deixei claro,
assumo que 1 já está resolvido. Tributar é legítimo. Segue-se, portanto, que os
pagadores de tributos não têm razão quando reclamam da cobrança de
tributos em si.
No entanto, isso é só a primeira parte da conversa. Se o estado não
satisfizer os critérios exigidos pelo segundo aspecto, a sonegação poderá ser
justificada. Isso é assim porque se os agentes do estado quiserem mesmo cobrar
tributos, terão de ter boas razões para fazê-lo. Tendo tais razões, precisarão
usá-los bem. O mero fato de terem legitimidade, em abstrato, para tributar, não
os autoriza a cobrar qualquer coisa sob qualquer justificativa. Tal autorização
também não existe quando, mesmo com boas razões para tributar, usam mal os
recursos obtidos.
Para tornar a ideia mais clara, pensemos nas leis de modo geral.
Aceitamos que o estado tem legitimidade para elaborar leis. No entanto,
exigimos – e temos o direito de fazê-lo – que as leis satisfaçam critérios,
como, por exemplo, a justiça e a compatibilidade, quando aplicada, com os
direitos individuais e o interesse público. Se uma lei particularmente estúpida
ou mal aplicada os violar, um cidadão tem razões para não obedecê-la. Afinal,
critérios importantes sobre os quais qualquer lei deve se assentar para não
foram satisfeitos. Essa atitude, destaco, é compatível com a posição segundo a
qual o estado pode legitimamente elaborar leis.
O que dizer da tributação? Aqui, um critério razoável é o de que, se não
todo, mas virtualmente todo o valor arrecadado por meio de tributos seja gasto
em prol da população. Infelizmente, no entanto, é uma verdade banal que grande
parte dos recursos arrecadados é desperdiçada. E uma vez que não há
legitimidade para a cobrança de uma quantidade qualquer de tributos que muito
provavelmente irá para o ralo, os pagadores podem sonegar essa quantidade,
digamos, moralmente (se a expressão “sonegar moralmente” soa escandalosa,
talvez isso se deva ao erro de assumir que uma categoria jurídica negativamente
carregada como o crime implica um juízo negativo sobre o estatuto moral da ação
em causa).
Para dar alguns números, o Instituto Brasileiro de
Planejamento Tributário (IBPT) divulgou em abril de 2013 que, entre os 30
países com as maiores cargas tributárias, o Brasil é o que menos retorna à
sociedade proporcionalmente ao que arrecada (a “Folha”, há poucos dias, deu notícia
semelhante). Há algumas semanas, o economista Marcus Guedes, em texto publicado
no blog do jornalista Ricardo Setti, estimou que desde o estabelecimento
da Constituição de 1988, o país pública uma média de 31 normas tributárias por
dia. Já em texto publicado no jornal “O Globo”, o jornalista Carlos Alberto
Sardenberg informa que, segundo pesquisa feita pelo Banco Mundial, o sistema
tributário brasileiro é o pior do mundo. Sardenberg também diz que, em média,
uma empresa brasileira gasta 2600 horas por ano só com obrigações fiscais.
O que temos, então, é o seguinte: mesmo tendo legitimidade para
tributar, o governo não consegue satisfazer, em parte, os critérios que
deveriam ser satisfeitos para reclamar nossos recursos. Como os tributos são
estabelecidos por leis, sonegá-los nada mais é do que não obedecer a leis,
quando não estúpidas, mal aplicadas. Portanto, a sonegação fiscal não é mais do
que uma instância particular da argumentação mais geral sobre as leis. E uma
vez que tanto pessoas físicas quanto jurídicas são lesadas pelo desperdício,
cidadãos comuns e empresários como os meus amigos têm justificativa moral para
sonegar.
Pode-se, é claro, oferecer objeções a atitudes como a dos meus amigos:
vivemos em uma democracia e nossas leis (inclusive aquelas que regem os
tributos) são feitas e aplicadas sob a égide de um regime que em tese a todos
representa. Assim, quem quer que desobedeça a uma lei, em uma democracia, deve
fazê-lo publicamente.
Tal objeção, no entanto, enfrenta uma dificuldade. Os benefícios
públicos desse tipo de desobediência são, no mínimo, bastante intangíveis e de
longo prazo, ao passo que as consequências para o desobediente são imediatas e
palpáveis. Não me parece razoável afirmar que, para poder se defender da sanha
insaciável do nosso Leviatã, empresas (e também pessoas) devam se prejudicar
gravemente em nome de algo como o aprimoramento da democracia. Pessoas não são
meios, mas fins em si. Exigir a desobediência pública é exigir que elas usem a
si próprias em nome de um fim político.
Consideremos duas últimas objeções e suas respectivas respostas. O
filósofo James Rachels formulou assim um argumento em favor da ideia de que
sempre devemos obedecer às leis: se não obedecermos sempre às leis, o estado
não pode existir. Seria desastroso não haver estado, pois a vida seria muito
pior sem ele. Assim, conclui, devemos sempre obedecê-las. O problema desse
argumento, como sugere o próprio Rachels, é que desobedecer a um conjunto
limitado de leis não parece ser a receita para o caos social. Há também o
argumento do contrato social: se gozamos dos benefícios da cidadania, então
implicitamente fizemos uma promessa de obedecer às leis do estado. O problema
desse argumento é que não nos é oferecida uma razão para obedecer a leis
injustas, estúpidas ou mal aplicadas. Assumir que a obediência a esse tipo de
lei é “prática cidadã” é um abuso da expressão.
Antes de encerrar, vale a pena considerar o seguinte: suponhamos que uma
pessoa saiba que parte dos recursos derivados de tributos será desperdiçada.
Qual é, do ponto de vista moral, a diferença entre sonegar e procurar brechas
legais que, bem usadas, permitem-na pagar menos tributos? Pode-se responder que
temos algo como um dever prima facie de cumprir a lei. No
entanto, em ambos os casos a ideia é a mesma: procurar meios de reter o que o
governo usa mal. O dever prima facie não faria mais do que
sugerir um caminho seguro e aborrecido de alcançar o mesmo resultado. No
entanto, deveres prima facie podem ser derrotados por boas
razões. E é defensável que o desperdício é uma excelente razão para a
desobediência.
Publicado originalmente no Mercado Popular
Fonte: http://direitoeliberdade.jusbrasil.com.br/artigos/131118087/sonegar-imposto-e-errado-nem-sempre-no-brasil-e-legitima-defesa?utm_campaign=newsletter&utm_medium=email&utm_source=newsletter
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