Brasileiro despreza latinidade, mas quer liderança regional
Uma pesquisa inédita de opinião pública confirmou o que a história e o
senso comum já sugeriam: o brasileiro despreza a América Latina, mas ao
mesmo tempo se vê como líder nato da região.
Apenas 4% dos brasileiros se definem como latino-americanos, ante uma
média de 43% em outros seis países latinos (Argentina, Chile, Colômbia,
Equador, México e Peru).
E mais: quem mora no Brasil avalia que o país seria o melhor
representante da América Latina no Conselho de Segurança da ONU, mas não
quer livre trânsito de latinos por suas fronteiras nem priorizar a
região na política externa.
Os resultados estão na edição 2014/2015 do projeto
The Americas and the World: Public Opinion and Foreign Policy
(As Américas e o Mundo: Opinião Pública e Política Externa), coordenado
pelo Centro de Investigação e Docência em Economia (Cide) do México, em
colaboração com universidades da região.
No Brasil, o responsável pela iniciativa é o Instituto de Relações
Internacionais da USP (Universidade de São Paulo), que aplicou 1.881
questionários no país.
Em uma das questões, os entrevistados deveriam apontar os gentílicos e
expressões com os quais mais se identificavam. A principal resposta foi
"brasileiro" (79%), seguida por "cidadão do mundo" (13%),
"latino-americano" (4%) e "sul-americano" (1%).
O Brasil foi o único entre os sete países da pesquisa em que o adjetivo
pátrio ficou entre as três principais opções dos entrevistados.
Argentinos, chilenos, colombianos, equatorianos e peruanos indicaram
"latino-americano", "sul-americano" e "cidadão do mundo". E a segunda e
terceira opção dos mexicanos depois de "latino-americano" foram,
respectivamente, "cidadão do mundo" e "norte-americano".
O estudo também fez a seguinte questão aos participantes: em qual região do mundo seu país deve prestar mais atenção?
Na mesma linha do item sobre identidade, o Brasil foi o único na
pesquisa a não priorizar a América Latina. Na opinião dos entrevistados,
o foco da política externa deve ser a África (24%), depois América
Latina (16%), seguida de perto por Europa (13%) e América do Norte
(9,5%).
Nos outros países a opção pela América Latina predominou, com percentuais de 57% (Argentina) a 30% (Chile e Peru).
Autoidentificação ambivalente
Para os autores da pesquisa, os resultados comprovam, com dados de
opinião pública, o que historiadores e cientistas sociais já apontavam: a
autoidentificação do brasileiro é tênue e ambivalente, marcada pela
percepção de pertencer a uma nação diferente dos vizinhos, seja pela
experiência colonial, língua ou processo de independência distinto.
"A primeira explicação é a colonização. América Latina sempre se
associou à colonização espanhola, e isso já gera uma divisão com o
passado português do Brasil", afirma o argentino Fernando Mourón,
pesquisador do Centro de Estudo das Negociações Internacionais da USP e
participante do estudo regional.
"Depois temos os processos de independência na região. Na América
espanhola houve guerras contra a Coroa e o reforço de uma identidade
cultural única, enquanto no Brasil o próprio regente português declarou a
independência."
A economia por muito tempo fechada aos vizinhos, a geografia
continental que dificulta conexões físicas e o histórico diplomático
também ajudam a explicar o "isolamento" brasileiro, avalia Mourón.
Sobre esse último ponto, em artigo ainda inédito sobre os resultados do
estudo, Mourón e os colegas da USP Janina Onuki e Francisco Urdinez
lembram que até o final da Guerra Fria diplomatas brasileiros
acreditavam que a melhor estratégia para aprimorar a inserção
internacional do país era manter distância de questões regionais.
"Uma das consequências foi que, até a metade dos anos 1980, as elites
brasileiras e a população em geral viram a América Latina não como
construção maior de identidade coletiva, mas apenas como a paisagem
geográfica imediata em torno do país", escrevem os autores.
Liderança contraditória
Ao analisar os dados da amostra, que é representativa de toda a
população dos países analisados, os pesquisadores concluem que os
brasileiros enxergam seu país como líder regional, mas em geral resistem
a possíveis implicações de assumir tal posição.
Questionados sobre qual país deveria assumir uma cadeira no Conselho de
Segurança da ONU caso o órgão abrisse uma vaga para a América Latina,
por exemplo, a maioria dos brasileiros (66%) indicou o próprio país.
O Brasil também foi a primeira opção dos entrevistados nos demais
países do estudo, exceto as outras duas maiores economias, Argentina e
México, onde os moradores também "elegeram" seus próprios países, com
60% e 54%, respectivamente.
Por outro lado, a maioria dos brasileiros (54%) discorda do livre
movimento de pessoas na região sem controles fronteiriços. A maior fatia
dos entrevistados também se opõe ao trabalho de sul-americanos no país
sem visto (66%) e rejeita (65%) a possibilidade de intervenção
brasileira em uma possível crise militar regional.
Quando o assunto é a "liderança pela carteira", ou seja, a ajuda
financeira a países menos desenvolvidos da região, 65% dos entrevistados
no Brasil disseram concordar com essa possibilidade.
Mas o índice do Brasil nesse item foi o menor de todos os países, e
ademais os pesquisadores alertam que os altos índices nas respostas
podem estar relacionados à tendência – identificada nos estudos de
opinião pública – de participantes a responder perguntas de fundo moral
baseados no que pensam ser algo social e politicamente correto.
Problemas na vizinhança
A partir do governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), a ênfase da
diplomacia brasileira na integração regional, como foco na América do
Sul, expõe o reconhecimento tácito da dificuldade do país em exercer
influência em todo o "continente" latino, avaliam Mourón e os
pesquisadores do Instituto de Relações Internacionais da USP.
Mas em geral, quando o assunto é opinião pública no Brasil, a América
Latina é vista mais como preocupação e problema do que benefício,
conclui o estudo.
Percepção que, afirma Mourón, acaba tendo respaldo na realidade, diante
da série de percalços que o país enfrentou na última década com os
vizinhos, como o episódio da nacionalização dos ativos da Petrobras na
Bolívia, a expulsão da Odebrecht do Equador, as barreiras de comércio
entre Brasil e Argentina e a frustrada sociedade com a Venezuela na
construção da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco.
Fonte: Terra Notícias
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